Caminhos para as religiões medianímicas no pós-pandemia
Medianímicas?
Refiro-me aqui às religiões organizadas em torno do fenômeno mediúnico, ou seja, da manifestação de espíritos que, pelo transe de adeptos, comunicam-se com os vivos para aconselhar, festejar e conviver. Em geral, nos ritos religiosos que se servem desse fenômeno, a revelação do sagrado não se dá por escrituras lidas como atemporais, citadas e comentadas à exaustão. Cada espírito comunicante é, em si, revelador do que sua própria experiência lhe permite dizer e ensinar. A revelação, então, se apresenta como um horto de variadas espécies de comunicadores, cada um equivalente a uma pequena pétala em uma flora sempre em expansão. Revelação que, no tempo, se forma, transforma e renova, porque sujeita ao tempo, como tudo que vive.
Anunciado esse meu recorte, aviso que não desprezo a qualidade e a legitimidade das revelações que, de maneira diversa, matizam e ornam a própria diversidade religiosa do mundo. No Brasil, contudo, a bricolagem sincrética de crenças e elementos rituais dos povos indígenas, dos povos africanos escravizados, da herança católica colonial e da posterior migração do espiritismo fizeram deste vasto país-continente um terreno fértil para o surgimento de religiões medianímicas. Esse é o berço, pois, das pajelanças, terecós, candomblés de caboclo, catimbós, umbandas, quimbandas etc. E, mesmo que essa vasta flora de comunicadores seja organizada, em cada religião, em sistemas doutrinários distintos (compreendidos aqui como encantados, ali como entidades ou divindades), essa específica licença para que se comuniquem diretamente através do transe do adepto as caracteriza como medianímicas. São diferentes do sacerdote que comenta/interpreta a escritura e do pastor que traduz o Espírito Santo. O médium, pelo transe, não interpreta nem traduz, apenas empresta aos espíritos sua corporalidade, por onde os espíritos dão corpo à revelação que trazem e que são.
Juntas e somadas ao espiritismo, as religiões de terreiro não são expressivas enquanto confissão religiosa dos brasileiros, apresentando crescimento tímido ao longo das últimas décadas. O Brasil é ainda uma nação fortemente católica. Além disso, cresce o contingente neopentecostal, o ateísmo e as formas mistas e autoguiadas de espiritualidade. Mas como a pandemia de Covid-19 pode afetar esse cenário? Que papel têm as religiões medianímicas com seus adeptos e consulentes no pós-pandemia? Vamos conversar sobre isso, ponto a ponto.
Fé, morte e sentido
Lembra-nos Rubem Alves (O que é religião?) que a relação do adepto com os símbolos religiosos é bem específica:
"Eles (os símbolos) respondem a 'um outro tipo de necessidade, tão poderosa quanto o sexo e a fome: a necessidade de viver num mundo que faça sentido. Quando os esquemas de sentido entram em colapso, ingressamos no mundo da loucura.'"
Ressalto, ainda, que esses esquemas de sentido, quando produzidos pelos ramos do cristianismo, são sempre moralmente direcionados. Atribui-se às forças divinas o poder de conduzir o mundo com justiça e amorosidade, beneficiando os bons e repreendendo os maus. Objetiva-se o caminho da teósis, a divinização do humano pela comunhão com o divino que lhe é princípio e fim.
Contudo, uma pandemia pode facilmente colapsar esse esquema de sentido. Primeiro, porque a experiência das sociedades contemporâneas com a morte é recalcada. Sobre isso, diz Norbert Elias (A solidão dos moribundos), que nelas:
"A vida é mais longa, a morte é adiada. O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida."
Mas, de repente e muito rapidamente, tivemos que lidar com o avanço terrível da Covid-19, responsável pela morte de milhões de pessoas em todo o planeta. Como se justifica o luto de tantas famílias e o agravamento das vulnerabilidades socioeconômicas? Há justificativa? No campo religioso, a crise gerada por essas questões pode descarrilar, de um lado, para o abandono das confissões religiosas ou menor envolvimento com elas e, do outro, para uma migração para as religiões medianímicas, oportunas justamente pela comunicação com os mortos.
Muito copo e pouca água
Não podemos esquecer que, hoje, perdem adeptos aquelas religiões que não se organizam empresarialmente e que não se adequam aos modelos do mercado religioso. A obrigação religiosa é monetizada, e com ela se paga a experiência numinosa: a bênção, a desobsessão ou o êxase. No Brasil, as religiões medianímicas, muitas vezes lançadas nessa lógica mais por reflexo que por intenção, facilitam o transe de forma irresponsável. A prática mediúnica demanda aprendizado lento, constante e autocrítico, aliado a uma preocupação ética com suas implicações na vida dos atendidos. No entanto, não raro, o transe se confunde com a fraude. Exibe-se um espetáculo de berros e contorcionismos, mas a fisicalidade do transe vira um fim em si, dissolvendo a revelação que deveria brotar em beleza e cuidado.
Encruza
Antevemos uma encruzilhada religiosa: o caminho do cuidado ou a manutenção de um sistema de sentido falido. De um lado, o fatalismo teológico atribui a pandemia a um projeto divino de purificação. Do outro, a possibilidade de recuperar o valor do cuidado e da revelação. A pandemia não é um projeto divino, mas um resultado histórico. E quando tudo passar, poderemos cuidar uns dos outros, ouvir, abraçar, conviver. Enquanto no tempo (e com o tempo), as revelações nos guiarão para um novo bosque de sentidos para nossa existência.
