Entre o poder e a graça
Fé, Ritual e Poder
Não raro, as pessoas se reúnem em torno da fé. Surgem templos, igrejas, terreiros e outros espaços sagrados. No entanto, nas religiões, o ritual é a fé em ato, sua materialização no mundo — no corpo, na vestimenta, no canto, no gesto. O ato da fé é o grande momento religioso, a celebração da comunhão com o sagrado e com nossos pares (e a fronteira entre ambos muitas vezes se dissolve). Os templos, quando esvaziados do ritual, são como ruínas, e cada símbolo neles costurado se assemelha a brinquedos abandonados, sem crianças que os despertem. A fé genuína é mais brinquedo que trabalho, pois o brinquedo existe por si mesmo, para si mesmo. Entre o brinquedo e quem brinca, a vida se revela em toda a sua graça. Quando a fé se confunde com trabalho, o ritual se torna uma coreografia desapaixonada, destinada a agradar os deuses com uma suposta técnica de culto, na esperança de alcançar a salvação. Labora-se no culto, cobra-se a recompensa. Mas os deuses não se interessam por técnicas — para isso existe a ciência, o discurso. Também não gostam de cobranças — para isso existem bancos e patrões. Os deuses se deliciam com os poemas, as cantigas, as brincadeiras. Por isso, há mais revelação nos brincos da infância do que em muitos rituais religiosos, contaminados há muito tempo por vícios violentos, o pior deles sendo o poder. Porque, às vezes, o ato da fé — a ritualidade conduzida como festa e brincadeira — dá lugar a atitudes de poder. Fé e poder estão em lugares distantes. O poder é guloso; a fé divide. O poder é estúpido; a fé é gentil. O poder é grande; a fé é desmedida. É poderosa a divindade que compartilha seu poder com os fracos, e, assim, o poder deixa de existir. Há apenas graça. Na aparência, não raro, as pessoas se reúnem em torno da fé, mas, na verdade, reúnem-se para disputar poder: quem será o mestre? O puro? Quem é o adivinho? O sábio? O guia? Quem? E a fé se transforma em uma poça rasa no chão batido. Por isso, estou cada vez mais convencido de que a fé genuína tem muito a ver com modos de viver juntos mais justos, já que o ritual é uma das práticas políticas mais antigas e básicas da coletividade humana — o berço da vida comum. Que nosso compromisso religioso seja a defesa de uma fé sem poder, mas cheia de graça, e, por isso, sempre agraciada.
As Religiões de Terreiro e o Poder
Se olharmos mais de perto para as religiões de terreiro, veremos que o poder também as consome e as corrompe. Quantos pais e mães de santo, zeladores, mestres e outros líderes conduzem seus ritos com uma arrogância estranha, como se dominassem uma técnica infalível de culto? Quantos filhos de terreiro, por terem mais tempo de salão, tratam os noviços com a mesma arrogância que aprenderam de seus iniciadores? E, assim, quantos já não abandonaram a fé, por se sentirem tão agredidos nela quanto na crueza do cotidiano? A ritualidade é a construção coletiva de novos mundos, mesmo que experimentados apenas na meia-luz dos barracões, tendas ou garagens. Mundos habitados pela poesia dos encantados, caboclos, guias, orixás, santos, inquices e voduns. Se, nos espaços religiosos, o mundo repete as estruturas de dominação do mundo comum, então tudo neles está errado. As religiões afro-brasileiras são herdeiras da resistência espiritual e identitária dos povos africanos escravizados. No entanto, muitas vezes as transformamos em teologias do cativeiro, e não da libertação. Que ancestral se alegraria ao ver, dentro de seu próprio culto, novas formas de chibata, que silenciosamente afastam seus herdeiros? O poder é dissimulado; a graça é franca. O poder silencia; a fé ouve. O poder é de poucos; a graça é para sempre nossa.
