Na casinha, um canto

03/04/2020

No escuro esparramado no corredor, baforo o charuto sobre as quartinhas abertas, duas, clareadas pela luz amarela e vacilante da vela. Deito o charuto sobre a boca da quartinha macho, assim como boto um cigarro em pé diante da quartinha fêmea. Firmo ponto, três zuelas para ele e para ela, repetidos sem pressa e entoados como se entre mim e a casinha houvesse um terreiro em festa. Saúdo, então, o Rei e a Sá Rainha. Sinto a chegança opaca, até esquiva, dessas figuras imantadas pelo encanto soturno de noites atemporais, noites que dão voz e chão ao povo da rua, das calungas, das matas altas e rasas, abertas e fechadas, dos ribeirões e pedreiras. Na fé de terreiro, enquanto curimbeiro, sempre acreditei que a disposição em cantar para nossos louvados, dividindo com eles a alegria de recebê-los (e apesar das intempéries que corroem nossa voz) mais justa que o lamento falado e carregado de exigência dissimulada. O lamento tem sua hora, porque confiamos no povo que nos escuta, e o lamento nos desafoga. Mas é o canto que realmente nos salva, que nos une, em alegria, à quem nos assiste, à quem nos ajuda como e quando pode, não em troca de nossas migalhas de fé. É sim para comungarmos sempre numa nova festa, numa nova gira que celebre a graça de viver entre nossos deuses e camaradas. É para estarmos juntos dos nossos, na verdadeira vida, ainda que todo tipo de morte nos acometa, que somos guardados e atendidos. Ressuscitados à cada estribilho. É por isso que lhes chamamos à beira das velas, firmezas, congás. 

Enfim, canto, daí fumamos juntos, nós três, em luto silencioso pelos tantos que andam partindo nesta pandemia. Fazemos também nosso lamento ao andarilho de palhas pelo fim das partidas. Daí eu canto, de novo. É festa, e me despeço.

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