Por uma filosofia das palhas

07/04/2020

Filosofia, é mesmo?

Filosofia aqui não como um sistema de pensamento rigidamente definido — longe de mim querer fundar uma escola ou doutrina. Falo de filosofia como uma atitude reflexiva, um mergulho curioso, mais lúdico que sistemático, nas profundezas de um tema. No caso, a relação entre silêncio e conhecimento, a partir das representações de Obaluaê, Orixá cultuado nas tradições de terreiro de herança iorubá.

Obaluaê e o silêncio

"Atotô" (ou "atótó") é a saudação popular a Obaluaê, geralmente traduzida como "silêncio". Mas não apenas isso. Na língua iorubá, "atótó" é um vocativo, uma interpelação, uma chamada de atenção. Quem é interpelado se cala para ouvir quem o chama. No Brasil, Obaluaê é fortemente associado ao ato de calar, como se, fora do silêncio, não fosse possível apreender a beleza de sua passagem pelo Aiê (o mundo material). Nos itãs que narram suas histórias, Obaluaê carrega chagas no corpo, tem a pele ferida, purulenta, e consigo traz todas as enfermidades — e, por isso, é o único capaz de superá-las. Nele estão todas as dores, e, ainda assim, é um dos Orixás mais silenciosos. Não grita, não murmura. Sob a palha que o veste, esconde-se o dono da peste, mas também o Jeholu, o dono das pérolas, o mais belo dos Orixás. É preciso silêncio para compreender o contraste que se harmoniza no Senhor da Terra. O que proponho aqui é que Obaluaê não nos convida ao silêncio apenas diante dele, mas também diante do mundo — um mundo feito de contrastes que só podem ser superados pelo silêncio atencioso.

Mundo que fala, e fala...

Somos profundamente influenciados por uma herança epistêmica ocidental, que remonta ao surgimento da burguesia na Idade Média. Rubem Alves, em seu livro O que é religião?, explica isso com clareza:

"Produziu-se, então, uma nova orientação para o pensamento, derivada de uma vontade de manipular e controlar a natureza. O homem medieval desejava contemplar e compreender. Sua atitude era passiva, receptiva. Agora, a necessidade da riqueza inaugura uma atitude agressiva, ativa, pela qual a nova classe se apropria da natureza, manipula-a, controla-a, força-a a submeter-se às suas intenções, integrando-se na linha que vai das minas e dos campos às fábricas, e destas aos mercados."

Esse momento histórico inaugura uma nova forma de conceber a relação sujeito-mundo, mediada não mais pela contemplação religiosa, mas pela lógica rigorosa e tecnicista, capaz de decifrar o mundo na voraz intenção de dominá-lo. Desse processo surge a secularização da razão e a marginalização do encanto. Vivemos, assim, em um mundo racionalizado, o que certamente trouxe avanços tecnológicos que ampliaram a comodidade e a expectativa de vida humana. No entanto, como a razão foi tão eficiente na dominação do mundo, e estando ela diretamente vinculada à consciência, quanto mais uma pessoa dispusesse de recursos racionais para explicar e dominar o mundo, mais "humana" ela seria. Estabelece-se, então, uma divisão entre civilização e barbárie, sábios e ignorantes, cientistas e religiosos, humanos e "os outros". Os civilizados deveriam dispor de um dispositivo essencial para demonstrar sua racionalidade — o discurso. Saber mobilizar palavras e conceitos na expressão oral e escrita tornou-se o modo de estar no mundo como "bom falante", aquele que sabe, explica e discorre. Opôs-se falar e agir contra ouvir e contemplar. Eis que vivemos em um mundo de numerosos falantes, porque falar é ser. E é como se os calados, por isso mesmo, falhassem em sua humanidade. Então falamos e falamos, mesmo sem ter o que dizer, mesmo sem antes ter escutado. O ruído se sobrepõe ao sentido, e a violência sonora define a comunicação humana.

Por que calar?

O silêncio é uma atitude de autoconhecimento e de conhecimento do mundo. Conhecimento aqui não como uma assimilação passiva dos objetos, mas como um ato de recriação. Conhecer o mundo é recriá-lo, assim como conhecer a si mesmo é fazer-se. Ao lançar-se sobre as coisas do mundo, o silêncio redefine tanto o objeto quanto aquele que o conhece. Nessa atitude, mundo e sujeito se confundem, transpassados pela consciência.

No entanto, a razão e o discurso, dupla força capaz de dominar o mundo, atribuíram uma falsa substância à consciência. Posta como instância genuinamente humana, que diferencia o homem da natureza e atribui ao primeiro a tarefa de dominar a segunda, confundiu-se conhecimento com posse. Possuir não é conhecer; é dominar os fatores contextuais de um objeto para não perdê-lo de vista, para tê-lo sempre disponível. Mas a condição substancial da consciência não permite que ela se comprometa, se funda às coisas do mundo — o que é vital para conhecer genuinamente. Nesse processo, não há silêncio; portanto, não há conhecimento verdadeiro, nem criação. Tudo se torna um eterno reconhecimento do já conhecido, uma volta constante à própria ignorância. E, como nesse engano só se atribui identidade ao que é consciente, ao que discursa e domina, ocorre que o mundo, enquanto emaranhado de coisas e fenômenos sem identidade e razão, é objetificado e colocado à mercê de toda forma de consumo, até seu colapso e esgotamento. O fim do mundo coincide, então, com o fim do silêncio. A recuperação do mundo como entidade a ser respeitada e cuidada — como parte de nós, já que se funde conosco no ato de conhecer — coincide com o retorno do silêncio. Obaluaê nos acuda, nos ensine a calar.

Silenciar é ouvir

É famoso o laboratório Orfield, nos EUA, e sua câmera anecóica, capaz de absorver o som a ponto de beirar o silêncio absoluto. Lá dentro, contudo, é impossível, após certo tempo, não ouvir o som do próprio batimento cardíaco, o pulso vital do próprio organismo. Servindo disso como metáfora, penso o silêncio não como uma atitude negativa, uma tentativa de suprimir a sonoridade do mundo. É, sim, uma atitude positiva, uma abertura para ouvir, conhecer, criar. O silêncio recupera o sentido do discurso e o limpa do alarido predatório. É um retorno a si mesmo, e, na fé de terreiro, esse retorno não é um caminho de fora para dentro. É sair de si (silenciando e conhecendo) e caminhar pela vida em direção ao Orixá, que é nossa origem e destino.

Atotô!

Era um lindo Xirê, e todos os Orixás dançavam alegremente com seus apetrechos. Serviam-se de boa carne e vinho de palma. Mas havia um que não dançava: Obaluaê. Sentado em um canto, ele apenas observava os demais, sem nada dizer, comendo e bebendo com moderação. Embriagados, os Orixás insistiram que Obaluaê se levantasse e fosse ao meio do salão no Orun para mostrar seu opanijé, sua dança. Incomodado com a insistência, Obaluaê cedeu. Seus movimentos, porém, não tinham a agilidade de Exu, o passo firme de Ogum e Xangô, ou a velocidade de Iansã. Os Orixás, esbarrando constantemente nele, acabaram por derrubá-lo. Viram então sua pele ferida e riram dela, riram de seu tombo e de sua dança lenta. Obaluaê, furioso, levantou-se e, com seu xaxará, golpeou as costas de todos os Orixás, que, ébrios, não puderam se defender e fugiram do salão. No dia seguinte, todos os golpeados adoeceram: bolhas vermelhas e doloridas brotaram em suas peles, e eles não podiam mais dançar. Oduduá lhes disse que haviam humilhado Obaluaê e que deviam pedir-lhe desculpas, servindo-lhe o deburu, a comida que ele mais apreciava. Assim fizeram e foram curados. Mas reclamaram a Oxalá da crueldade de Obaluaê, e Oxalá o obrigou a viver nas matas, sempre longe dos outros. E até hoje, quando os Xirês terminam e os Orixás retornam para seus reinos, ao passarem pela mata, veem Obaluaê dançando alegremente, no silêncio. E sua dança é a mais bela de todo o Orun.


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