Quando desconfiar do transe mediúnico?
É infeliz trazer esse tema, mas é importante. Quando estamos em qualquer chão de terreiro, diante de uma entidade ou encantado, ainda que tenhamos pouco ou nenhum entendimento das religiões medianímicas, tendemos a revelar pequenas partes ou a inteireza de nossas dores. A consulência é uma posição frágil, porque estar diante de uma entidade é como estar perto do céu, e duvidar disso pode ser conveniente ou parecer um pecado. Seria uma utopia se todos os atendimentos tivessem esse gosto celeste, mas não é o caso. O mais comum, na verdade, são atendimentos conduzidos com tamanho despreparo e maldade que, não raro, engatilham crises de ansiedade, criam fixações, esperas angustiosas e medos irreais, afastando pessoas carentes de amparo, violentadas pela dureza do mundo, e que, na busca por alento, acabam se deparando com um carrossel de enganos.
Não quero generalizar o erro, pois as religiões de terreiro são muitas e encantam diversas vidas pelo país. Uma vida encantada é uma vida salva. Precisamos, juntos, em nossas casas, zelar pela manutenção desse encanto da fé, que nos recobra a infância e, por isso mesmo, nos abriga no colo de nossos Orixás. As religiões são instituições humanas, refletem nossas fraquezas, razão pela qual devemos cuidar para que nossos terreiros, tendas, barracões e templos não se tornem porões de violência e desencanto para gente perdida.
A mediunidade é um fenômeno complexo, e o caminho da acusação não facilita seu entendimento. Um transe confuso, perverso ou fraudulento prejudica a convivência do ancestral manifesto com sua comunidade e, por isso, é responsabilidade da chefia da casa dar suporte aos filhos que passam a experimentar formas de transe.
Ao começar a frequentar um terreiro, precisamos construir a confiança de trabalho em trabalho. É essencial testemunharmos as canjiras do início ao fim, observando como se estabelecem as relações entre guias, sacerdote, médiuns, cambones e outros assistidos. São relações de respeito, cuidado e simpatia? Isso é fundamental, e a corrente não deve confundir atribuição com poder. Em um ilê, cada pessoa tem um papel diferente, mas esses papéis não representam lugares hierárquicos como numa empresa. A organização social de um terreiro é mais proveitosa se, em vez de uma pirâmide, se constituir como uma floresta — todos como árvores de uma mesma espécie, em que as mais velhas alimentam as novas pelo emaranhado das raízes, formando juntas uma comunidade que estimula um microclima favorável. No caso, um clima espiritual propício ao amparo da consulência.
A seguir, aponto alguns comportamentos típicos que indicam comunicações pouco confiáveis e que, dependendo da gravidade, podem tornar recomendável o afastamento da casa ou, pelo menos, do médium que veicula tais enganos.
Egolatria
Fenômeno comum em zeladores, pais pequenos e médiuns que começam a ganhar prestígio nos atendimentos. De repente, as entidades manifestas nesses médiuns passam a se colocar como mais poderosas que as outras, como se ocupassem um lugar de comando na organização falangista dos espíritos (no caso de algumas Umbandas). Começam a esnobar outras entidades, tratá-las com rispidez e a tecer julgamentos sobre o trabalho alheio, sempre para se afirmarem como mais fortes e sábias. Desaparecem de suas comunicações quaisquer sinais de generosidade e acolhimento. A egolatria facilmente se desdobra em fabulação.
Fabulação e incoerência
Acontece quando as entidades narram longuíssimas histórias sobre si mesmas, sugerindo que foram mártires ou figuras admiradas pelo médium. Suas narrativas são recheadas de sofrimentos absurdos, encontros com santos, Orixás, demônios e guerras espirituais onde sempre saem vitoriosas. Embora seja sabido que as falanges de Umbanda são compostas por espíritos que viveram em condições de vulnerabilidade, na fabulação há um exagero espetacular, criado não para ensinar, mas para infundir terror. A incoerência se revela também na falta de conexão com datas históricas e na construção improvisada e hiperbólica de suas histórias.
Intimidação
A intimidação é uma extensão da egolatria. Aqui, a entidade não apenas se afirma poderosa, mas exerce um poder agressivo sobre outra entidade, um cambone, a curimba, um médium, um consulente ou toda a corrente. A ofensa e o deboche preparam o terreno para o abuso psicológico, concretizado no discurso fatalista.
Fatalismo
O fatalismo impõe a ideia de que todos os passos da vida já estão determinados e que a entidade tudo vê e tudo negocia. A entidade se torna um negociador de falsos atalhos, ameaçando e extorquindo. Quanto mais previsões você ouve, mais percebe que não se concretizam, pois a revelação mediúnica não existe para prever o futuro, mas para ajudar a cuidar do Ori.
Ritualismo
Diferente da ritualidade, o ritualismo prioriza a materialidade acima da espiritualidade, criando barreiras de acesso a quem não tem condições financeiras de cumprir exigências supérfluas. Essa distorção afasta os mais necessitados e elitiza a tradição.
Assédio
Seja psicológico ou sexual, o assédio é uma fraude. É comum em giras de Exus, Pombojiras e Malandros, quando médiuns se aproveitam das manifestações para insinuar-se sexualmente.
Vaidade
Se uma entidade faz birra por falta de paramento ou bebida, fique em alerta.
Cada filho de terreiro pode tanto perpetrar esses enganos quanto enfrentá-los. Cada canjira é o campo de uma silenciosa batalha entre nosso vício pelo poder e nossa disposição para a graça e a comunhão. As teologias de terreiro são teologias do abraço, e é isso que deve guiar nossa prática.
