Uma frieza iluminada, ou o negacionismo espiritualizado

07/06/2021

Sabemos, infelizmente, que numa pirâmide da negligência em pandemia, religiosos e espiritualistas estão no topo. E não me refiro somente ao neopentecostalismo, ultraconservador e negacionista, que angariou massas de adeptos entre os mais pobres deste país. Refiro-me especialmente a um movimento que combina alguns fatores próprios da contemporaneidade: primeiro, jovens adultos bem colocados socioeconomicamente que praticam um tipo de espiritualidade autorreferente, ou seja, não referenciada em um núcleo religioso e parte de uma comunidade religiosa, mas sim baseada em acepções pessoais sobre os pressupostos ou os fundamentos de diferentes religiões. Não se trata apenas de uma espiritualidade individualizada, mas também individualista, pois ainda que esse movimento discurse a favor da coletividade em vários níveis, não consegue experimentar a religião enquanto experiência coletivizada da fé, não é capaz de assumir os compromissos de uma confissão religiosa, e não aceita ser introduzido e conduzido nesse compromisso por qualquer figura de poder e/ou comando. Segundo, esses jovens veiculam suas acepções místicas através das redes sociais, servindo-se de uma personalização mitificada da própria imagem, e oferecem práticas terapêuticas ou cursos/workshops de viés esotérico e holístico, nos moldes estabelecidos pela cultura de coaching. Terceiro, esses serviços espirituais são vendidos, tornando-se a principal fonte de renda desse grupo. 

Esse movimento é uma das expressões do neoliberalismo, que tudo monetiza, valora, vendendo o difuso 'bem-estar espiritual' através de seus novos sacerdotes empreendedores. Mas durante a pandemia uma faceta perversa desse movimento se intensificou. Todas as tensões psicológicas disparadas pela pandemia deram um fôlego gigante a esse mercado de bem-estar espiritual. Disso, uma série de terapias e medicinas alternativas foram vendidas como garantidoras de prevenção contra a Covid-19, e, ao mesmo tempo, um discurso paranoico, anti-vacina, foi dosado com requintes de iluminação espiritual nos seguidores/compradores. 

Do encantamento a alienação

Os sacerdotes autônomos desta new age contemporânea são produto e produtores de um tipo ardiloso de alienação. Gozam dos confortos e privilégios garantidos por uma condição socioeconômica favorável, geralmente herdada, mas acreditam com veemência que tais confortos e privilégios são fruto de suas práticas espirituais, e por isso, consideram-se aptos para ensinar seus seguidores a alcançar os mesmos benefícios (não sem algum investimento, é claro). Para os compradores desses serviços a experiência pode ser frustrante, mas se seu universo de acessos for similar ao do ministrante, a alienação se perpetua até formar, na melhor hipótese, um novo sacerdote empreendedor. Ou seja, essa figura é autônoma na condução de suas próprias práticas, mas coloca-se como orientadora da experiência alheia.

Essa prática alienante é vendida como encantamento, e aí reside o maior perigo: o encantamento amplia horizontes, não comprime; clareia decisões, não anuvia; não ignora fatos científicos relacionados a segurança e qualidade de vida, não. O encantamento dialoga com os entendimentos do mundo, faz um exercício de compreensão, escuta e conciliação. É dialético. O encantamento não bota em risco a vida de ninguém. Mas entre o encantamento e a alienação há uma passagem sutil, perigosa, que uma vez atravessado, vai provocando uma distância talvez sem volta, e a fé então vai ganhando contornos de patologia. O encantamento é sensível, empático, e nesse contexto pandêmico, é espantoso e cruel não se sensibilizar com mais de 3.720.000 mortes pelo mundo. Milhões de vidas interrompidas, milhões de famílias enlutadas. Ainda que se creia em vida pós-morte, em desencarne e reencarnação, a morte é a morte. O sofrimento é o sofrimento. Devemos cultivar um respeito não só pela vida dos outros, mas pela morte também, pelo que ela provoca em quem não partilha de nossas crenças. Esse movimento alienante, ao incentivar comportamentos negligentes para uma massa de seguidores, vender e comoditizar bem-estar espiritual, e promover a ideia de que a pandemia é um tipo de projeto divino para limpeza astral e reclusão meditativa, está operando numa lógica que chamo aqui de frieza iluminada. Por trás de uma suposta luz de superioridade espiritual, há uma frieza apática para com as tragédias do mundo. A frieza iluminada, enquanto tipo de alienação, é tão autorreferente que perde qualquer capacidade de se importar com o outro, principalmente se ele não for um cliente. 

O que cabe a nós, filhos de pemba, de terreiro, é o exercício atento e cuidadoso de perceber como experimentamos nossa fé. Alienação provoca alienação e trauma, encantamento provoca encantamento e espiritualidade responsável. Trabalhemos, pois, por uma fé sempre encantada. 


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